“Para os árabes não se pode dar voz aos judeus”
‘Rejeitou’ Quentin Tarantino, que o chamou para Kill Bill, porque queria ser realizador e o seu terceiro filme, O Atentado, chegou em abril a Portugal.
João Tomé
O Atentado é escrito e realizado pelo libanês, durante muitos anos cameraman de Quentin Tarantino, Ziad Doueiri. Falámos com ele sobre a sua carreira e o filme que acompanha um médico israelo-palestianino em conflito pessoal depois de descobrir que a mulher é bombista.
Como é que foi ter aos EUA a trabalhar para talentos como Tarantino?
Nunca planeei. Deixei Beirute com 19 e fui estudar cinema na Califórnia. Depois comecei à procura de trabalho na cidade e comecei a ganhar experiência como técnico, na câmara, na grua, nas luzes. Nunca tive intenção de realizar. O meu primeiro filme era do Roger Corman [conhecido produtor] e chamava-se Munchie (1992) – uma versão barata, série B, dos Gremlins. Ganhei muita experiência e aprendi muito nessa altura mesmo a trabalhar em filmes chamados ‘trashy’. O panorama independente em LA nos anos 80 foi muito interessante.
E como é que começou a trabalhar com o Tarantino?
Tive uma entrevista com o director de fotografia, já tinha algum experiência em filmes B e consegui o trabalho. Desde aí continuámos sempre a trabalhar juntos. Depois de fazermos o Cães Danados (1992), o Tarantino continuou a utilizar a mesma equipa e fizemos o Pulp Fiction e outros. Se eu continuasse a fazer trabalho de câmara ainda estaria a trabalhar com ele. Ele pediu-me para participar no Kill Bill mas eu decidi que não queria continuar a trabalhar como câmara. Estava numa altura da minha vida em que queria fazer outras coisas. Mas ele manteve a lealdade com a equipa técnica é praticamente toda a mesma. A maioria dos realizadores usa a mesma equipa, o Scorsese faz o mesmo. Quando encontram a equipa certa mantém-na.
Quando estava a fazer
esses filmes, Reservoir Dogs, Pulp
Fiction, o Tarantino não era tão conhecido como é hoje. Tinham noção
que estavam a criar algo tão importante que se iria tornar um clássico?
Simplesmente não sabíamos. Nunca sabemos. Quando fizemos o
Reservoir Dogs, olhei para o guião e não sabia se era bom ou mau. Nunca sabemos
se é magnífico ou uma merda, só depois, porque era tão estranho e tão
diferente. O Reservoir Dogs foi uma das minhas experiência preferidas num
filme.
Porquê?
Há dois anos vi algumas fotografias dessa altura, tiradas na
rodagem e trouxe-me de volta aqueles tempos. Foi uma boa experiência.
Compreendo que as pessoas queiram fazer um grande alarido do Tarantino porque
ele é um realizador tão fantástico e é tão popular e de culto, por isso as
pessoas pensam que a experiência de trabalhar com ele foi tão incrível e única
quanto ele é como realizador. Foi, mas não mais do que noutros filmes, porque a
rodagem é um ambiente técnico. O que é único em trabalhar com ele é que ele é
muito entusiasta sobre o que faz. Ele simplesmente adora o seu trabalho, ele
está-se a borrifar para política, para o amor, tem tudo a ver com a história em
si. Ele é como uma criança numa rodagem e isso afecta-nos porque ele tem uma
mente incrível, a forma como trabalha e tem uma memória de elefante, na forma
como se lembra de tantos filmes. Todas as semanas ele faz um visionamento na
sua casa de um filme projectado em 35 mm, porque ele tem uma coleção enorme de
filmes. Ele é tão dedicado à profissão de fazer filmes, que o seu foco
principal é sempre como transformar algo em filme. Tem uma mente tão eléctrica
e cria personagens muito interessantes.
Depois decidiu realizar...
Sim, mas não foi pensado foi progressivo ao longo dos anos. Percebi que aprendi a arte o suficiente e a comandar o cenário – fazer filmes é uma arte artesenal – e queria contar as minhas histórias. Comecei a sentir-me nostálgico – estive 15 anos sem voltar a Beirute – e escrevi em LA o West Beyrouth [filme político que lhe valeu vários prémios] e o Entre as Pernas de Lila.
Ainda estava em Los Angeles na altura em que escreveu o guião para o filme West Beirute (1998), que lhe valeu prémios em Cannes e Toronto?
Sim, sem dúvida. Escrevi lá esse, o Entre as Pernas de Lila
(que estreou em 2004) e o guião do Man in the Middle, para o qual estou a
tentar financiamento, todos escritos em LA. LA é um local muito criativo,
bizarro mas criativo.
Mas voltou nesse
período para Beirute, não foi?
Voltei para Beirute depois do 11 de Setembro (de 2001),
porque conheci uma rapariga... conheci alguém e senti que como realizador não
precisava de estar em Los Angeles, por isso deixei LA e mudei-me primeiro para
o México, por uma mulher. Fui para Bordéus por uma mulher (risos). Parece-me
que saio sempre de países porque conheço alguém. Mas primeiro voltei a Beirute
porque conheci em LA uma rapariga que era de Beirute, apaixonei-me por ela e
fiquei lá com ela. Agora resido em Paris, devido a um problema que prefiro não
falar.
Em O Atentado volta ao contexto político israelo-palestiniano. Como chegou a esta história?
Embora seja uma história mais geral do que isso. Fui convidado em 2006 para realizar e adaptar o livro com o mesmo nome pela Focus Features e aceitei com condições. Eles queriam que fosse falado em inglês e prometiam, assim, o Tom Hanks. Com ele a bordo ia ganhar mais mas preferi que fosse em árabe e hebraico. Em inglês não fazia sentido. Pelo meio começou a guerra do Hezbollah quando estava a viver em Beirute e o projeto acabou por ficar na gaveta e voltámos a ele em 2011.
O protagonista, Ali Suliman, tal como a personagem, é israelo-palestiniano. Foi importante ter alguém com as duas culturas?
Ele percebe a confusão os iraelo-árabes sentem. É árabe mas é israelita e percebe que está numa situação difícil a nível pessoal. Cresceu em Israel, aprendeu hebraico, misturou-se com os israelitas judeus mas ainda tem a sua identidade árabe, tal como o protagonista. Quando leu o guião disse-me que sentia o mesmo que a personagem.
O filme teve críticas ferozes da parte árabe. Como foi a recepção?
Não fazia ideia como seriam as reações de judeus e árabes.
Estava curioso mas não estava preocupado com isso. Assim que o filme estreou na
América teve um grande sucesso junto da comunidade judaica, embora não seja nem
a favor nem contra nenhuma das partes, tem muitas nuances. A comunidade árabe
não reagiu tão bem, porque a mentalidade judaica permite questionar as suas
próprias crenças, enquanto para os árabes não podemos dar voz aos judeus sobre
nenhum pretexto. Não podemos, são maus da fita. Para o público judeu o facto de
ter mostrado os dois lados foi bom, para os árabes foi mau, porque como é que
podemos mostrar o ponto de vista judeu, eles não têm um ponto de vista, não
merecem um ponto de vista. E agora é moda boicotar-se Israel e o facto de ter
filmado em Tel Avic com técnicos israelitas e atores judeus foi mal visto e
houve uma campanha contra o filme. Mas o que se pode fazer?
E quais os próximos projetos?
Estou a trabalhar com a Arte, a televisão francesa e alemã e a terminar um guião menos político e menos trágico que também se passa no Médio Oriente e chama-se Affaires étran-gères, que terá Gérard Depardieu. É baseado num acidente que tive. Vamos gravar em setembro.
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