Luiz Pacheco viveu nas Caldas da Rainha em duas casas e ao longo de anos diferentes, para o final dos anos 60 e princípio dos 70. A Gazeta das Caldas fez um suplemento curioso repleto de cartas e textos feitos por Pacheco durante esse período e sobre os mais diversos temas. Dos muitos textos presentes nessa "colectânea" feita por João Bonifácio Serra, deixo aqui dois excertos e ainda um outro excerto do livro Comunidade.
1968-1971
O Caso das Criancinhas
"Gosto muito de Caldas da Rainha. É uma terra muito bonita que tem um parque muito catita. Ah, também tem uma mata muito bonita com plátanos, mas fica mais acima. Tem um igreja muito velha. Tem gente muito velha como todas as cidades de Provínica e gente que parece gente. Gosto muito de passear no parque das Caldas. Tem árvores flores um cinema muito velho um museu quase novo. Caldas da Rainha tem uma grande categoria: é a terra onde melhor se caga, porque é terra onde melhor se come: Vem mesmo gente de muito longe (de Lisboa, se Setúbal, das Frâncias, das Alemanhas e doutros lados muitos) para experimentar. Às vezes comem mal e por vingança vão cagar a outro sítio; nessas alturas os Caldenses ficam muito tristes muito (direi?) quase envergonhados e ou melindrados porque o segredo da abundância e excelente qualidade das produções hortícolas e frutícolas das jeiras dos arrabaldes que abastecem o mercado é a alta muita qualidade dos estrumes caldenses. Os Caldenses quando cagam guardam a merda toda na cabeça e só a despejam para uns baldes que os matarroanos vêm depois buscar em carrocitas puxadas à mão ou pot jericos quando está a abarrotar e algum turista de passagem repara nisso.
(...) Gosto muito de Caldas da Rainha. É uma terra, etc. Tem um bairro de lata, as Morenas (como todas as cidades que se prezam), onde morava o Senhor Jota (de que adiante talvez se dê notícia). Os maiorais da cidade passam o tempo nos cafés, discutindo filosofia (todos os estrangeiros e mesmo até alguns Gregos ficaram impressionados com esta peculiaridade local; tiraram fotografias, filmes, gravações, reportagens lindas). O alto nível da cultura caldense avalia-se na frequência pelos indígenas às suas bibliotecas e museus: numa há sempre um leitos, no museu sempre o porteiro. Às vezes, aparece um cisne ou pato ganso a querer entrar (com que direito?), mas são logo expulsos para não perturbar quem está. Como diz o rifão: quem está, está.
"Quando a dor no peito me oprime, corre o ombro, o braço esquerdo, surge nas costas, tumifica a carótida e dá-lhe um calor que não gosto; quando a respiração se acelera em busca duma lufada que a renasça, o medo da morte afinal se escancara (medo-mor, tamanha injustiça, torpeza infinita), aperto a mão da Irene, a sua mão débil e branca. Quero acordá-la. E digo : «não me deixes morrer, não deixes…» Penso para comigo, repito para me convencer: «esta pequena mão, âncora de carne em vida, estas amarras suas veias artérias palpitantes, este peso dum corpo e este calor, não me deixarão partir ainda…» E aperto-lhe a mão com força, e acabo às vezes por adormecer assim, quase confiante, agarrado à sua vida. Ah, são as mulheres que nos prendem à terra, a velha terra-mãe, eu sei, eu sei ! São elas que nos salvam do silêncio implacável, do esquecimento definitivo, elas que nos transportam ao futuro, à imortalidade na espécie (nem teremos outra) pelo fruto bendito do seu ventre (eu sei, eu sei…)",
in Comunidade (as fotos são do livro Literatura Comestível)
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