domingo, abril 19, 2009

memórias auditivas




Auto da Pimenta, cantado por Rui Veloso, com letras do inevitável Carlos Tê - que se inspirou em vários textos e "estórias" portuguesas.
Este foi o segundo CD que comprei na vida, no início dos anos 1990 - adquirido através de um Vale CD que tinha recebido no meu 10.º aniversário. Foi adquirido na loja de música do Centro Comercial da Avenida das Montras, nas Caldas da Rainha - numa altura em que ainda havia memória dos sítios onde comprávamos a música que ouvíamos em casa. Tinha 10 anos.
Só comprei este Auto da Pimento porque o meu pai insistiu bastante, garantia-me que era muito bom, que não me ia arrepender. Fiquei arrependido durante dois ou três anos e sempre culpei o meu progenitor pela compra, que não me tinha entretido nada - também dei-lhe poucas oportunidades, diga-se.

Tudo mudou dois ou três anos mais tarde, numa aula de português, no Liceu (Escola Raul Proença, Caldas da Rainha). Isto porque um dos textos que tivemos de trabalhar, era uma canção de Rui Veloso chamada País do Gelo, exactamente deste álbum - a que nunca tinha prestado grande atenção.
Fiquei fascinado pela história que existia na letra e foi isso que me fez ir à prateleira dos CD's lá de casa procurar, com dificuldade, o Auto da Pimenta.
Com o belo álbum nas mãos (é feito de cartão, com um óptimo e inspirado booklet e espaço para os dois CD's - na altura era raro ver coisas destas -, passei várias horas a ouvir as canções, ler e cantar as letras... imaginando toda a vida que estava ali projectada... deambulando pelas histórias incríveis e fascinantes lá descritas, com tanto pormenor, cor, sabor e cheiro que dava para me sentir ali, no século XV, XVI e XVII, em plenos Descobrimentos, a viajar para África, Brasil, Índia, China, País do Gelo.

Nunca mais larguei aquele álbum especial, com letras incríveis do Carlos Tê, música agradável a misturar rock algum som medieval e a voz quente do Rui Veloso. Consumi com um sorriso nos lábios esta História de Portugal cantada, repleta de personagens (desconhecidas) e curiosas. E culpo o meu pai. Obrigado.




País Do Gelo
Carlos Tê / Rui Veloso


Lá vai a nau catrineta que tem tudo por contar
Ouvi só mais uma história que vos vai fazer pasmar
Eram mil e doze a bordo nas contas do escrivão
Sem contar os galináceos sete patos e um cão

Era lista mui sortida de fidalgos passageiros
Desde mulheres de má vida a padres e mesteireiros
Iam todos tão airosos com seus farneis e merendas
Mais parecia um piquenique do que a carreira das indias

Ao passarem cabo verde o mar deu em encrespar
Logo viram ao que vinham quando a nau deu em bailar
Veio a cresta do equador e o cabo da boa esperança
Onde o velho adamastor subiu o ritmo da dança

Foi tamanha a danação foi puxado o bailarico
Quem sanfonava a canção era a mão do mafarrico
Tinha morrido o piloto e em febre o capitão ardia
Encantada pela corrente para sul a nau se perdia

Subia a conta dos dias ficavam podres os dentes
Eram tantas as sangrias morriam da cura os doentes
E o cheiro era tão mau e a fé tão vacilante
Parecia que a pobre nau era o inferno de dante

Com o leme sem governo e a derrota já perdida
Fizeram auto de fé com as mulheres de má vida
E foram tirando à sorte quem havia de morrer
Para que o vizinho do lado tivesse o que comer

No céu três meninas loiras cantavam um cantochão
Todas vestidas de tule para levar o capitão
No meio do seu delírio mostrou a raça de bravo
Teve ainda força na língua para as mandar ao diabo

Neste martírio sem fim ficou o lenho a boiar
Até que um vento gelado a terra firme o fez varar
Que diria o escrivão se pudesse escrevinhar
Eram mil e doze a bordo e doze haviam de chegar

Ao grande país do gelo com mil cristais a brilhar
Onde a paz era tão branca só se quiseram deitar
Naqueles lençois de linho a plumas acolchoados
E lá dormiram para sempre como meninos cansados





Excelentes são também músicas como:

Canção de Marinhar, Cruzeiro do Sul, Faena de Mar, Calmaria, Praia das Lágrimas, Mulher d`Armas, Trovas Vincentinas, Nativa, O Ourives Mestre João, À Sombra da Tamareira, Logo que Passe a Monção, Memorial, Brizas do Restelo.

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