quarta-feira, março 05, 2008

lições de jornalismo

O P2 de hoje é de retrospectiva dos 18 do Público e tem 92 páginas muito curiosas, onde jazem críticas ao jornal feitas na linguagem escorreita e brilhantemente sexual de Miguel Esteves Cardoso, inovações que aconteceram desde 1990 e uma recolha de alguns dos 200 prémios recebidos pelo Público nos seus 18 anos de actividade.

Deixo, de seguida, alguns dos inícios de reportagens premiadas que jezem neste caderno muito pertinente:

A introdução de Adelino Gomes começa assim...



"Quanto vale uma notícia? Quanto vale uma manchete? Quanto vale uma entrevista? Quanto valem uma crónica de António Lobo Antunes, de Mia Couto, de José Eduardo Agualusa? Quanto vale uma coluna de Vasco Pulido Valente? Quanto valia cada editorial de Vicente Jorge Silva, na primeira fase do PÚBLICO? Cada Fio do Horizonte de Eduardo Prado Coelho, que nos deixou em 2007?
Os prémios valem o que valem. Uma estatueta, um cheque, o aplauso da crítica, de um júri, do público. Há quem tudo faça para os receber. Há quem (Sartre, Herberto, poucos mais) os rejeite. Há quem, simplesmente, os aceite, consciente de que representam o reconhecimento por parte de quem os atribuiu. E há, a moderar vaidades excessivas, a lista extensa dos que, tendo-os recebido, os não mereceram; e aquela, não menos comprida, dos que, nunca os tendo recebido, os mereceram mais do que os mais premiados de todos. (...)"






Prémio Revelação do Clube de Jornalistas
Fantasmas de Blteni
de Luís Pedro Nunes

"Sexta-feira, dia 8, num Março nevado, por volta das 18 horas: o Camin Spital surge absurdo ao anoitecer. Um prédio antigo, rodeado por uma cerca de arame que o isola de um internato de rapazes. A lama e a cerca estabelecem a divisória entre a normalidade a anormalidade. Entre produtivos e improdutivos para o Estado.
A ansiedade de dois dias de viagem leva médicos e enfermeiras portugueses a pedir uma primeira visita lá a cima. O director sabia, porém, uma única frase — estudada previamente — em idioma não romeno: you must be strong — é preciso ser forte. Di-lo com nervosismo e desconfiança, entre baforadas dos cigarros gregos que fuma incessantemente. Está apenas há quinze dias a dirigir o Camin. O seu antecessor — uma mulher — fora afastado. Desviava alimentos e roupa do asilo. Tinha feito uma pequena empresa, dirá a rir, em francês correcto, Cosmina, uma romena que trabalha, integrada numa organização francesa, noutro camin.
Mas, mais que o aviso do director, algo diferente, obsessivo, corporal, intenso, deixara todos de sobreaviso. Logo à entrada do camin, mesmo antes de se ultrapassar a porta principal. O cheiro. Sobretudo, o cheiro. (...)"






1990 Gazeta de Reportagem e Foto-jornalismo
Moçambique, todo o sofrimento do mundo
de Fernando Dacosta

"São seis da manhã e voamos já alto sobre a savana da Zambézia. O sol deixa-nos ver com nitidez, em baixo, miniaturas de aldeias arrasadas, de camiões calci nados, de pontes desfeitas, de vias destruídas; rolos de fumo sobem no ar quente, aos poucos a paisagem faz-se deslumbrante, o dia glorioso.
O pequeno avião, um Cessna de cinco lugares, vai cheio de sacos de farinha, garrafas de óleo, fardos de açúcar e pacotes de remédios para fazerem viver, por alguns dias mais, algu mas das centenas de pessoa que se encontram no campo de acolhimento de Mogulama, o mais dramático da província.
É através de pontes aéreas assim, intensas, exaustivas, que se estão a tentar salvar as populações do interior. No norte do país emergem hoje os maiores acampamentos de deslocados do globo, o sofrimento neles é mil vezes pior que nos do Cambodja ou nos da Etiópia.
Um imenso e silencioso genocídio cruza-nos lentamente. Em cada minuto uma pessoa morre de fome, em cada hora uma pessoa é abatida - mutilada, escravizada. Quantificando tamanhos horrores, o Population Crisis Committee colocou Moçambique no primeiro lugar (Angola no segundo) do “Human Suff e ring Índex”. (...)"





1991 Prémio Reportagem da FLAD (Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento)
Os primos da América
de José Ferreira Fernandes

"Ao lado dos “Sons of Portugal”, a “Suicide Squad” que também apareceu em Gustine faz fi gura de meninos de coro. O título é para americano impressionar e, de facto, chama-se Grupo de Forcados de Turlock. Há na Califórnia, no meio do Vale de San Joaquin, mais dois grupos de pegadores de touros, em Escalon e Tulare. Ali pontifica Frank Borba, o apoderado da dezena de corridas que se fazem anualmente na Califórnia.
Chapéu largo, gordo, de óculos, é um milionário de “jeans” sujos, o que é inevitável para quem anda a cortar milho desde as cinco da manhã, montado numa colossal trituradora. Ele e os três fi lhos falam português, facto notável, sendo todos já nascidos na América. Tem gado leiteiro, de que de que a fi lha se ocupa, e uma paixão pelo gado bravo, partilhada pelos dois fi lhos machos. A partir de vacas americanas cruzadas com touros mexicanos criou uma manada de 200 cabeças apuradas para a fi esta. À entrada do rancho, construiu o “Campo Bravo”, praça de touros onde as faenas são sublinhadas pela “Azores Band of Escalon”. Da ilha Terceira, fez vir o cavaleiro João Miranda para treinar cavalos de lide. (...)"



1992 Gazeta de Reportagem
Corvo, um herói da periferia
de José António Cerejo
"Subitamente, a pancadaria começou. Pouco passava das 11 da noite e o campo de batalha estendia-se entre a via rápida de Sintra e a entrada de Queluz de Baixo. De um lado os do Gheto, do outro os do Gang do Limão. Ao todo, seriam umas seis dezenas de jovens entre os 14 e os 21 anos. Durante quase meia hora choveram calhaus, houve paulada, lutou-se corpo a corpo. No fim da refrega, ficaram umas cabeças partidas, uns arranhões e uma imensa sensação de alívio. (...)"

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