segunda-feira, fevereiro 04, 2008

fhf em versão regicídio





A propósito da mini-série portuguesa O Dia do Regicídio, entrevistei para o blog via e-mail um dos argumentistas, Filipe Homem Fonseca. O outro é Mário Botequilha, com quem FHF co-escreveu também a série de época, Bocage.
Sobre O Dia do Regicídio, trata-se de uma série de seis episódios da RTP, sobre os acontecimentos históricos que culminaram nos assassínios do rei D. Carlos e do seu filho D. Luís Filipe, no dia 1 de Fevereiro de 1908.
Correcção 06-02-2008 - Os seis episódios passaram todos no passado fim-de-semana num versão aglutinada de dois episódios juntos, mas devem repetir em breve na versão de um episódio por dia. FHF explica aqui.


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Como surgiu esta ideia de fazer uma mini-série sobre O Dia do Regícidio? Tu e o Mário Botequilha foram convidados?
Depois de "Bocage", a RTP quis continuar a colaboração com o Fernando Vendrell, comigo e com o Mário Botequilha a nível de séries Históricas, ou, para sermos mais precisos, séries de ficção baseadas em factos históricos. Aproximavam-se os 100 anos do regicídio e o FV propôs à RTP uma série sobre este acontecimento, que começámos a desenvolver.


A série aborda apenas e só o dia do regícidio? Qual é a estrutura narrativa e porque é que foi essa a escolhida?
Passa-se entre 1906 e 1908, até ao funeral do Rei D. Carlos e de D. Luis Filipe e partida de Aquilino Ribeiro para França. A estrutura tal como a definimos no guião era fragmentada, assente por vezes em linhas temporais diferentes, com recurso a flashbacks e flashforwards, e momentos retratados de formas diferentes de acordo com o ponto de vista das várias personagens. Na fase de montagem, e pelo que nos é dado assistir até ao momento (estamos a 4 de Fevereiro, e ainda nos faltam ver os dois últimos episódios, que serão exibidos na sua versão "aglutinada" esta noite na RTP 1), tornou-se bastante mais linear, e esses dispositivos temporais com os quais tencionávamos dar mais dinamismo à narrativa não se concretizaram.

Sempre foi nossa intenção retratar o maior número de personagens possível, de maneira a dar uma visão mais alargada dos acontecimentos que levaram ao regicídio (mas nem por isso menos âmbigua, antes pelo contrário). Tivemos por isso de lidar com várias narrativas paralelas, vários núcleos de personagens que, na sua maior parte, só se cruzaram fisicamente no 1 de Fevereiro de 1908, o que tornou a feitura desta série particularmente complexa, quer a nível da escrita, quer de produção, mas que também a tornou, creio, e mesmo com todas as condicionantes, mais apelativa.


Tiveram o apoio de historiadores? Quais as principais dificuldades de se escrever sobre História?

Tivemos o apoio de dois: Alice Samara, que nos facultou acesso a documentação e reuniu connosco um par de vezes para alguns esclarecimentos, e Eduardo Nobre, com quem tentámos tirar algumas dúvidas já depois da escrita das primeiras versões do guião.
A principal dificuldade em retratar períodos históricos tem a ver com condicionantes de produção (vulgo €€€ a menos). Muitos acontecimentos há que, por não haver possibilidade de recriar, têm de ser apenas mencionados. Um exemplo, tirado desta série: sempre achámos necessário mostrar os confrontos que tiveram lugar em Lisboa, 1906, quando Bernardino Machado chegou de comboio. O número de figurantes necessário para a recriação dessa cena, e a transformação da fachada da estação, eram ovos impossíveis de obter com o orçamento disponível para a omelete que é esta série, pelo que só pudemos mencionar o acontecido pela voz de José Nunes, que lá teria estado também ao soco. A lógica de "para quê dizer quando se pode mostrar?" inverte-se assim completamente em alguns casos. Esta é uma condicionante que não afecta só as séries de época - um argumentista confronta-se com este tipo de problemas sempre que precisa de uma cena de maior aparato.


Para escrever uma série sobre um acontecimento histórico existe sempre a necessidade de "preencher" os espaços que a história não aborda, as conversas, etc... Essa tarefa foi complicada?
Foi, mas também foi aquilo que maior gozo nos deu na escrita desta série. Como ficcionistas, é aliciante traçar um perfil e um percurso pessoal de cada um dos personagens tendo em conta aquilo que, historicamente, fizeram. Lidar com personagens já de si âmbiguas, sobre as quais se encontram versões por vezes completamente díspares acerca do papel que tiveram no desenrolar dos acontecimentos (Aquilino Ribeiro, por exemplo), significa ter um leque mais alargado de escolhas, de possibilidades de construção narrativa, o que torna o trabalho bastante mais difícil, mas também mais aliciante.


Depois de teres escrito esta série, ficaste com uma ideia diferente do regicídio? Qual?
Sempre nos fez alguma confusão como é que num país que não prima pela organização e pela boa comunicação entre os diversos sectores e instituições, mais a mais numa altura em que golpes parecem ter sido tratados na base do "que carro é que levamos? o meu não pode ser porque tenho de ir buscar a minha mulher" (Aquilino Ribeiro conta uma historia mais ou menos nestes termos no seu "Um Escritor Confessa-se"), um atentado contra a vida do Rei tivesse concretizado os seus objectivos de forma tão eficaz. O que fomos apurando, mais do ponto de vista dramatúrgico do que factual, é que o golpe não foi conseguido tal como planeado.

A intenção era assassinar toda a Família Real mais João Franco. Consta ter sido António José de Almeida a dizer "Nunca a revolução será feita sobre o cadáver do Rei", o que traz mais peso à teoria de que a intenção seria também matar Franco, e esboça a possibilidade - mínima, creio -, de, a determinada altura, o alvo poder ter sido apenas e só João Franco, sendo a deportação o destino para a Família Real. Juntemos a isso o facto de Franco ter chegado a não passar duas noites seguidas sob o mesmo tecto, com medo de atentados contra a sua pessoa, dos quais, supostamente, a secreta que tinha sob sua chefia o tinha avisado, e Franco é, pelo menos, um alvo mais que provável, a par da Família Real.
Encontrámos versões em que Franco se teria deslocado pelo interior do Arsenal da Marinha, para escapar à multidão, ao mesmo tempo que, convencido de que D. Carlos não corria qualquer perigo (ou, pelo menos, a pensar mais na sua própria segurança do que a do Rei), não se mostrara preocupado pela decisão do Rei de seguir num landau aberto pelo Terreiro do Paço.
Acontece que, segundo nos foi dado perceber, a intenção de fazer cair a monarquia (o que só aconteceria em 1910) era comum a vários sectores; e, mais ainda, a intenção de fazer cair o Rei D. Carlos era partilhada até por partidos e figuras monárquicas. Isto para dizer que a intenção de uns podia não ser a de outros, o(s) alvo(s) preferenciais não seriam certamente comuns. Júlio Vilhena escreveu em 1907 no Jornal Popular, a propósito de uma entrevista feita a D. Carlos e a D.ª Amélia, "Isto termina fatalmente por um crime ou por uma revolução". Certezas há que os tiros atingiram fatalmente D. Carlos e D. Luis Filipe, e que D. Manuel foi atingido no braço já à entrada da rua do Arsenal.


Como definirias o Rei D. Carlos e a família? Haviam pormenores sórdidos sobre eles?
Nada de sórdido.
A pesquisa que fizemos teve como objectivo a construção das personagens que, tal como a série, são ficção baseada em factos reais. Todas as definições, se assim as podemos chamar, que poderíamos fazer de D. Carlos e da sua família estão nos guiões quie escrevemos, e servem propósitos muito específicos de evolução de personagens e narrativa. Nesse sentido, são os acontecimentos que definiam ou ilustravam determinadas caracteristicas das personagens que acabaram por não sair do guião, ou, pelo menos, que não foram exibidos na versão da série que está a ser exibida na RTP1, que penso dever apontar.

Uma das facetas mais interessantes da vida do Rei D. Carlos era o seu interesse pelo mar, muito evidente nas suas Campanhas Oceanográficas - ainda hoje material de peso no estudo da costa portuguesa -, e pelos momentos de lazer passados a bordo do iate D.ª Amélia. Este iate era, no guião, palco de uma cena em que ficava bem patente o papel de D. Carlos em questões de diplomacia internacional. Não esquecer que as deslocações e recepções oficiais de D. Carlos aconteceram quase que na sua totalidade antes de 1906, portanto fora do período contemplado pela série.
Em relação a D.ª Amélia, existe uma sequência em que dramatizámos uma visita sua em segredo a um hospital, dando corpo aos relatos de que a Rainha muitas vezes praticava este tipo de gestos de caridade. Essa sequência só poderá ser vista, creio, quando a série for exibida na RTP 2.








O Filipe Homem Fonseca é o do meio.



Vocês leram muita coisa sobre aquela época e sobre o rei. Recordas-te de pormenores curiosos sobre a época e os hábitos que existiam nela?
Existem, como é óbvio, inúmeras diferenças, todas elas relevantes, mas falando de forma mais simplista penso que existem muitos paralelos entre o Portugal de 1908 e o de hoje, quer a nível político (rotativismo) quer geográfico (com Lisboa ainda a funcionar como centro de decisões), quer a nível do papel que sociedades secretas como a maçonaria têm na sociedade. Uma das maiores surpresas durante a pesquisa teve a ver com outro sentimento que hoje se vive - embora, claro está, noutro contexto e noutra escala. Refiro-me à insegurança constante sentida pela possibilidade da explosão de uma bomba. Era frequente, por parte de grupos ligados à carbonária, o rebentamento de dispositivos explosivos, alguns feitos com pinhas de ferro tiradas das varandas, que serviam de receptáculo de TNT e vidro moído, ao ponto de essas peças terem sido proibidas.


Tens mais projectos deste tipo para o futuro? O que vais fazer nos próximos tempos?
Tenho, mas só falo deles depois de ter a Winchester carregada.

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