in Publico
Pelo nosso enviado BRUNO PRATA, em Gelsenkirchen
Quinta-feira, 27 de Maio de 2004
Dezassete anos depois, o FC Porto voltou a atingir o céu. Gelsenkirchen provou que o futebol é uma religião pagã, onde as pessoas se encontram para momentos de verdadeira adoração aos vencedores. E nada melhor que o templo do Schalke 04 para venerar o novo campeão europeu. Mourinho queria uma final espectacular e não a teve tanto como ele gostaria, mas que importa isso numa vitória com três golos para recordar?
"Eu sei que o futebol é assim mesmo/um dia a gente ganha/outro dia a gente perde/mas porque é que/quando a gente ganha/ninguém se lembra que o futebol é assim mesmo?". Este retalho de "Quando É Dia de Futebol", escrito pelo centenário poeta Carlos Drummond de Andrade, que não gostava de efemérides, retrata como uma luva o jogo de ontem. O FC Porto não foi, longe disso, a equipa dominadora que mostrou ser noutros jogos desta caminhada triunfal, o Mónaco até chegou a assustar, mas ninguém pode questionar o resultado e gastar muito tempo com o adversário quando este foi batido por um esclarecedor 3-0.
A Liga dos Campeões é patrocinada, entre outros, pela PlayStation, jogo em que vale a perícia nos comandos, aquilo que mais faltou aos jogadores portistas durante quase toda a primeira parte. Na posição defensiva, a tecla relativa à pressão não funcionou, pese embora a aplicação de Costinha. Mas onde os portistas começaram verdadeiramente irreconhecíveis foi na organização atacante, onde a tecla "xis", na consola sempre reservada ao passe, era demasiada vezes tocada de forma trapalhona e com imperfeição, o "círculo" nunca resultava em centros bem medidos e o "triângulo" pior ainda nas tentativas de conseguir boas aberturas.
Como uma boa parte dos jogadores do FC Porto não se entendia com os "comandos", o FC Porto surgiu como uma réplica fraca da equipa que cedo silenciou o Riazor, apesar de ter alinhado exactamente com o mesmo "onze" e com uma estratégica idêntica à da Corunha. Logo aos 2', só a rapidez e o corte em última instância com a perna de Baía impediu que o isolado Giuly chegasse primeiro à bola. Deco não conseguia pegar no jogo, escorregando um sem-número de vezes, no que seria imitado por vários colegas de equipa; Carlos Alberto tanto arrancava um bom drible como logo revelava ingenuidade; a Derlei as bolas não chegavam e parecia menos inspirado do que tem sido costume; a Paulo Ferreira parecia ter-lhe caído mal o lanche e era vezes sem conta batido por Cissé; Maniche idem e Pedro Mendes e Nuno Valente distinguiam-se pelos disparates, embora o primeiro tenha começado a melhorar após a meia hora de jogo. Salvavam-se praticamente apenas Baía (três ou quatro intervenções magníficas), Costinha (sempre muito concentrado) e principalmente Ricardo Carvalho, que sabe de cor as teclas todas e toca-as sempre na perfeição.
O FC Porto acabaria por terminar com apenas 46 por cento de posse de bola na primeira parte, surpreendentemente com menos dois minutos que o adversário, com um sem-número de passes errados e quase sem conseguir entrar na área do Mónaco, que levou vantagem na nota artística, embora também sem entusiasmar por aí além. De facto, durante largos períodos a bola parecia atraída pelo círculo central e o jogo decorria em pouco metros e com uma densidade populacional que pedia meças com o centro de Tóquio.
Mas os instantes finais da primeira parte já foram de alguma retoma para o FC Porto, até porque o Mónaco sofreu um duro revés aos 22, quando o capitão Giuly teve de sair lesionado e Morientes passou a ter por companheiro na frente o croata Prso. O seu futebol ficou claramente mais previsível e com menos capacidade de explosão sem o internacional francês. Morientes ainda viu ser-lhe mal assinalado um fora-de-jogo quando se isolava, mas os adeptos portistas deram finalmente nota de si aos 33', após um boa jogada em que a bola passou sucessivamente por Paulo Ferreira, Derlei e Deco, que viu o remate prematuramente travado por um adversário.
Mas a primeira vez que o FC Porto visou verdadeiramente pela primeira vez a baliza do italiano Roma resultou em golo, com Carlos Alberto a mostrar a magia negra que distingue os sobredotados. Recebeu o centro de Paulo Ferreira, pareceu primeiro tentar a assistência para Derlei, a bola ressaltou em Rodriguez e o brasileiro levantou a perna como se fosse a pá de um moinho e atirou para o fundo da baliza.
Estava feito o mais difícil, sem grandes primores, é certo, mas nas finais é muitas vezes assim, como de resto bem avisara Deschamps. Quando o jogo recomeçou, havia nitidamente no ar a sensação de que só um segundo golo traria alguma tranquilidade ao FC Porto, até porque, de alguma forma, ontem em Gelsenkirchen estavam em confronto a melhor defesa e o melhor ataque da Liga dos Campeões. Mas o Mónaco, que não foi inferior durante muito tempo, sofreu o que o dramaturgo Nélson Rodrigues chamou "complexo do vira-lata": acobardou-se no momento decisivo e pagou o sentimento de inferioridade.
E é justo reconhecer que muito da tranquilidade necessária veio ser dada aos portistas com a entrada de Alenitchev, que confirmou ter um pendão especial para se destacar nas finais, como já mostrara em Sevilha. Carlos Alberto saiu à hora de jogo, tinha feito o mais difícil, Deschamps arriscou a entrada de Nonda, mas os falhanços de Paulo Ferreira e Nuno Valente iam sendo resolvidos pelos centrais e por um Vítor Baía que ontem provou, se isso fosse alguma vez preciso, que é um crime ir ver o Europeu pela televisão.
Mas uma final sem um momento de magia de Deco seria uma falha grave da produção. Quando Deco arrancou do seu meio-campo, deslizando com a bola colada ao pé durante metros e mais metros na relva até a entregar a Alenitchev e a receber do russo, para trocar os olhos ao guarda-redes e aos centrais antes de rematar, imparável, o quadro tornou-se claramente mais perfeito. Baía continuou a resolver as coisas lá atrás e a última cena estava justamente reservada para Alenichev, que naquele jeito superior de controlar a bola, como se de um czar se tratasse, recebeu de Derlei e fechou a conta com um remate que teve tanto de perfeito como de raiva. E a festa dos jogadores portistas começou muito antes do jogo acabar.
quinta-feira, maio 27, 2004
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