Imagem da National Geographic portuguesa
«O problema é mais grave do que se pensa»
A poluição urbana é um problema das cidades modernas e que vai condicionar a vida das gerações futuras. Com 81 anos, o arquitecto paisagista Gonçalo Ribeito Telles já foi secretário de Estado, ministro, vereador e deputado e é um acérrimo defensor do ambiente. O autor da principal legislação ambiental do país, explicou ao Destak que a maior parte das medidas que estão a ser tomadas pelas autoridades são erradas e que para uma melhor qualidade de vida e ambiente à-que apostar numa política de reorganização urbana, evitando a entrada de carros nas grandes cidades. É o nosso futuro que está em causa quando se prejudica o ambiente.
por João Tomé
[publicado no jornal Destak, em Setembro 2004 - versão aumentada]
As cidades portuguesas estão cheias de carros e o aumento de combustíveis este ano chegou mesmo a aumentar 3% no primeiro semestre. Para si, a que se deve este aumento no uso de combustíveis mesmo depois dos preços terem aumentado 12,4%?
Tudo isso é uma consequência da forma como as cidades crescem, e do modelo de crescimento urbano que aplicamos. A cidades estão com tantos carros e isso só aumento também devido ao grande apoio e incentivo que o transporte privado tem tido pelos responsáveis das câmaras e do país. No Algarve, por exemplo, todas as vias entre os lotes de aldeias turísticas de construção não tem sequer espaço para a circulação de peões e bicicletas. São faixas de asfalto com seis metros de largura e 65 centímetros de passeios de cada lado. Isto incentiva a que se ande só de automóvel, ninguém anda nem passeia a pé ou de bicicleta, enfim, numa zona turística.
Lisboa, por exemplo, enquanto não incentivar uma política de corredores verdes e circulação de bicicletas e de peões na cidade não tem solução em termos, nem de qualidade de vida nem de recreio.
Que doenças ou dificuldades de saúde pode criar a poluição urbana?
Pode atacar as vias respiratórias, que é muito grave, e ainda existe outro problema que é a secura estival. É provocada pelo excesso de temperatura, nos meses quentes nas cidades porque não há um regulador indispensável na cidade que é a vegetação. Quando estamos a ter uma política de fazer parques de estacionamento dentro dos zonas interiores da cidade, dentro dos quintais, em todo o lado, estamos a prejudicar muito o problema de saúde na cidade.
No que diz respeito à poluição urbana, quais as medidas a curto prazo e mais urgentes a adoptar?
O calor é provocado porque só existem superficies impermeáveis, que não respiram, e faltam as superficies permeáveis como a vegetação, que respiram. Portanto, a temperatura aumenta desmesuradamente, porque a radiação das paredes é muito grande e não tem o necessário contrabalançar do sistema natural e da vegetação como se faz hoje em muitas das cidades europeias. Ou seja, isto vai “morrer” sufocado no Verão e “morrer” inundado no Inverno.
Além do mais, não pode haver tantos parques de estacionamento, principalmente subterrâneos, nem a circulação intensa que hoje temos. Não temos já divisas para pagar a energia que vem de fora. O problema é muito mais grave do que se pensa e é muito grave também em termos de qualidade e de abastecimento alimentar.
Os transportes públicos em Lisboa não funcionam porque há muitos automóveis que vêm para a cidade com uma pessoa e também não vêm nos transportes públicos porque demoram muito tempo.
Lisboa tem todo um plano feito e estudado para uma circulação de bicicletas em toda a cidade, que não foi aplicado porque não interessa. Têm de ser feitos corredores especiais integrados na vegetação e isso diminui a possibilidade da construção, coisa que muitos não querem.
E a longo prazo?
É modificar o urbanismo zomado por grandes concentrações de construções e ausência de corredores, transformá-lo num urbanismo e planeamento sistémico. Por exemplo, temos de tratar do problema da circulação da água, não podemos ter espaços verdes a brincar aos parques, que já não se usam em lado nenhum. Hoje têm de ser criados nos melhores sitios para que a vegetação cresça, mas o que acontece é que são construidos com uma porcaria de arranjos exteriores e de parquesinhos que são artificiais e que custam muito dinheiro para conservar e não têm a extensão que possibilite um melhor recreio e melhor qualidade de verde.
A nível de planeamento continua a haver poucos espaços verdes, será que essa situação faz parte da mentalidade portuguesa?
Não é disso que se trata. O que se passa é que há uma lei que não é cumprida que é a número 399, de 22 de Setembro, que diz que todos os munícipios tem de ter, com base do planeamento, uma estrutura ecológica municipal. Onde é que ela está? Não existe em nenhum munícipio. Trata-se de uma estrutura ecológica que mete todas as formas do sistema natural. Desde os bosques, às agriculturas dos vales, às encostas, aos espaços mais de recreio, às circulações de peões e bicicletas, não é um somatória de jardins e parques é algo mais, que está já a ser feito na maior parte das cidades, em França, na Alemanha, na Holanda. Além disso, também há tantos automóveis privados e tantas casas vazias.
Somos pouco preocupados na generalidade com o ambiente?
Não somos nós que não somos preocupados. Isto tem a ver com as fortunas que se fazem em Portugal e que hoje são muitas, que se fazem há custa da especulação urbana. É a política global que está errada, que é da responsabilidade dos governos e das autarquias que é quem comanda o processo de desenvolvimento.
Está neste momento a realizar um projecto de recuperação dos jardins da Gulbenkian. Como se recupera um jardim, o que envolve esse processo?
Eu estou a fazer exactamente o que deve ser feito nos serviços que existem, que é recuperá-los para uma economia mais natural que implique uma situação estável da vegetação e não uma situação artificial, que é o que se está a fazer por todo o lado na Europa. Os relvados nos parques públicos não são artificiais, são prados. Toda a parte de arborização e das redes são bosques, principalmente com as árvores do local, indígenas. Para saber o que envolve o processo de uma forma prática, só mesmo lá indo ver à Gulbenkian. Um jardim daqueles é uma questão de concepção e não apenas de flores. O mais importante num jardim acaba por ser a manutenção e conservação e por isso recuperar um jardim demora a eternidade. Cá desligou-se a concepção de jardins da sua manutenção, como se fossem casas ou edificios. O sistema natural desses espaços está em permanente evolução e a manutenção tem de acompanhá-la, que é o crescimento das árvores, dos prados. A manutenção não pode procurar que aquilo tudo seja um cenário estático.
As melhores plantas a plantar não digo. Não é para amadores.
Qual a obra de que mais se orgulha?
É o que não está feito. O que foi projectado e não está realizado. E depois há algumas coisas que foram destruidas pela manutenção, pela incompreensão do que era aquilo. Outras estão meio degradadas, como algumas zonas em Lisboa: o parque de São Jerónimo em Belém. Outras estão em vias de ser degradadas como o alto do parque Eduardo VII, onde se aplicou o sistema actual de manutenção, que leva à degradação.
Qual a obra que mais gostaria de fazer?
A obra do sistema natural do homem, principalmente nas zonas onde que ele está instalado, que é nas grandes cidades, nas áreas metropolitanas. É uma obra colectiva, não tem apenas a ver com uma pessoa, porque para continuar e manter essa obra têm de vir outras pessoas para a continuar no tempo. Exemplo disso são os jardins da Gulbenkian, que estavam a ser completamente destruidos por uma manutenção tradicional e clássica que levava a que ficasse de uma forma estática. Em bom tempo estamos a organizar para que o jardim possa ter a evolução natural, que acompanhe o desenvolvimento das árvores, dos maciços, a situação das clareiras dos relvados. Aquilo estava a ser destruído pela manutenção, como estão a ser todos os jardins de Lisboa.
Como tem visto a abordagem da câmara aos assuntos ambientais? Estão no bom caminho?
Não tem abordado coisa nenhuma! Os assuntos ambientais dizem respeito à construção da cidade e não tem sido feito nada nesse aspecto. Por exemplo, o problema de não se ter feito o corredor e a recuperação da ribeira da Alcântara – em que já está um projecto feito – é um situação ambiental gravíssima, não querem porque preferem construir na zona onde passa a ribeira. A câmara não tem contribuido para estas questões porque não as percebe.
E sobre o túnel do marquês, é necessário?
Eu acho que não era necessário para coisa nenhuma, há outras obras mais importantes, a unica utilidade que o túnel tem é ser visível.
Será prejudicial a nivel ambiental?
Tudo o que não é feito de forma organizada em termos de território é sempre prejudicial para o ambiente e gera poluição. Não traz vantagens, portanto é contrário a um bom ambiente. Gera mais carros na cidade e confusão.
E a recuperação de Monsanto? Como vê esta medida?
Monsanto não tinha solo. O principal responsável foi o engenheiro Rodrigo, que para fazer solo teve de colocar plantas pioneiras, as que haviam no país, para tentar uma recuperação do solo, porque sem solo bom não há vegetação. A recuperação foi feita e as plantas que fizeram essa recuperação e criaram matéria orgânica, hoje estão a ser destruídas pela própria vegetação natural dos carvalhos, das pistáceas, e tudo isso que está a aparecer com grande força. Está melhor do que estava, agora é preciso que deixem avançar a vegetação natural e que auxiliem as plantas pioneiras, não deixando avançar as plantas invasoras. Foi uma obra de 30 anos da própria natureza.
Quem são para si as pessoas mais capazes do ponto de vista ambiental em Portugal?
Parte das entidades responsáveis terem o bom senso suficiente e conhecimento na matéria, que não têm, para irem ao encontro daquilo que as pessoas desejam e não andar a criar embustes, a enganá-las, com esses arranjos, de rotundas, de arranjos exteriores a grandes urbanizações, isso tudo é para deitar fora. Há bastantes pessoas capazes cá, arquitectos paisagistas a trabalhar bem, só que também há muitas dificuldades.
Qual o seu sonho para Portugal de um ponto de vista ambiental?
É a recuperação da agricultura em todo o país. Não há ambiente possível sem recuperarmos por todo o país uma agricultura diversificada, de tipo mediterrânico, polivalente que integre depois os espaços urbanos. Hoje não há divisão entre espaços urbanos e espaços rurais, isso acabou, não há fronteiras. Tem de se interligar, como foi na origem, um com o outro. O planeamento tem de abranger os dois aspectos. Há que, de uma forma sábia, articular tanto o sistema natural que tem a agricultura, o recreio, as matas, como o sistema construido que tem os edifícios e os arruamentos. Hoje as cidades não estão dentro de muralhas nem respeitam limites administrativos, esses limites acabaram. É uma ocupação do território que integra o sistema de abrigo, que é o edificado, com o sistema natural (agricultura, pastagens, matas e não jardins da celeste artificiais). Se não fizermos isto estamos a arranjar um artificialismo que nos vai sair muito caro.