quarta-feira, junho 17, 2020

diz que é uma espécie de história

Quem gosta de história como eu, cedo percebe que os principais registos sobre os chamados Descobrimentos (pelo menos os mais entusiasmantes), ali pelos séculos XV e XVI, são sempre registados por não portugueses.

Os maiores elogios em torno do que foi feito e como foi feito diferente face ao que acontecia na Europa (e no mundo) naquela altura foram sempre de observadores estrangeiros - podemos ver isso em torno de figuras como os Corte-Real, Pero da Covilhã, Afonso de Albuquerque, Jorge Álvares, padre Sebastião Vieira, padre Tomás Pereira, Rui Faleiro, Fernão de Magalhães, Cristóvão de Mendonça, Manuel Godinho de Heredia, Pedro Fernandes de Queirós, Fernão Pires de Andrade, Duarte Barbosa, Caramuru, e reis como D. João II, D. Manuel ou D. João III.

Há várias explicações para isso, mas a principal é que Portugal enveredou na altura por manter quase tudo o que era feito de mais destemido um segredo de Estado (só revelava feitos marítimos quando dava jeito e era estrategicamente vantajoso) e os registos que podiam existir foram sendo destruídos pelo passar dos anos e pelos donos disto tudo (incluindo os castelhanos no período que governaram).
Há muitos anos que se vive em Portugal sob os louros desse suposto legado dos Descobrimentos. Exagera-se em muita coisa, dependendo do que se quer servir, mas acima de tudo conta-se muitas vezes a história pela metade, incluindo nos livros escolares - omite-se também o pior e mais abjeto dessa mesma história que não consistiu apenas nos milhões de africanos escravos que foram 'traficados' para a América (bem antes dos portugueses chegarem aquelas partes da costa africana já milhões de africanos eram há muito escravos de uma elite muçulmana).

Se há coisa que os tugas aparentemente fizeram bem naquela altura antes, durante e (a espaços) depois do reinado de D. João II foi reunir os melhores de várias áreas e investir na ciência e em pessoas vindas de várias partes da Europa (não era ciência portuguesa, era ciência europeia) para a epopeia dos mares nunca antes navegados (ou raramente, vá). A ciência marítima evoluiu muito com a ajuda do que pessoas de nacionalidades várias fizeram em Portugal.

Pessoalmente, mais do que ver a história sob a perspectiva de "os portugueses já foram espectaculares", gosto de conhecer as histórias daqueles tempos e das figuras que por lá viveram (sim, pela perspectiva dos portugueses e do seu tempo, que é a que conhecemos melhor, mas não só). E é bem mais fácil ficar encantado com nomes que poucos conhecem do que com qualquer Vasco da Gama ou outros que têm estátuas e nomes de rua por todo o lado.

Só como exemplo, Fernão de Magalhães tinha um escravo que tinha adquirido em Malaca em 1511 a que deu o nome de Henrique. Ler os registos do veneziano Antonio Pigafeta (outra personagem incrível) sobre este malaio intérprete e guerreiro torna-o tão cativante quanto misterioso e a relação dele com Magalhães também é bem complexa, repleta de companheirismo, confiança cega e amizade. Assim que Magalhães foi morto nas Moluscas, Henrique não ficou lá para ser comandado pelos que ficaram, foi-se embora e parece certo que foi o primeiro ser humano a cumprir a viagem de circum-navegação.

Uma história que fiquei a conhecer mais recentemente foi a de João de Sá Panasco (nome cristão, claro). Um africano negro nascido no Congo e que, não se sabe de que forma, foi feito escravo (provavelmente pelas elites muçulmanas que alimentavam o tráfego português de escravos no litoral oeste de África) que serviu, a meio do século XVI, na corte de D. João III. Foi o que chamavam na altura “criado de moço em Portugal”, como escravo do nobre D. João de Lencastre, que o terá comprado. Mais tarde foi levado e acarinhado na corte do Reino como uma espécie de animador (ou bobo, não é certo) pela inteligência das suas piadas sarcásticas, “de cujos ditos e motes o rei D. João III de Portugal muito o apreciava ao ponto de o fazer seu moço-fidalgo após 1526”. Mas mais interessante é perceber que a confiança neste escravo inteligente era tanta que foi um dos estrategas numa vitória dos portugueses em Tunis, na Tunísia sobre o Império Otomano da altura no verão de 1535 e, depois disso, ganhou o estatuto oficial de nobre, pertencente à importante Ordem de Santiago e era um dos confidentes do rei.

João de Sá tornou-se famoso até mais recentemente por ser protagonista num incrível quadro de um autor da Flandres que retrata com pormenor a Lisboa (neste caso é Alfama) multicultural e multicores do século XVI, denominado Chafariz d´el Rei.

Numa análise do investigador britânico Stefan Halikowski Smith podemos ler sobre o quadro de autor anónimo do norte da Europa: “Chafariz d´el Rei has also been of interest because of its depiction of so many black and white figures together, from all social strata and walks of life and in many (often water-related) trades in a public square. It very obviously suggests that black residents of Lisbon at that time, if originating from the trade in slaves, had been able to make their way as freedmen and women into Portuguese society.”

Este mesmo autor escreveu um livro peculiar sobre uma população de portugueses misturados com locais - a famosa miscigenação portuguesa - no sudeste asiático, atual Tailândia: “This book provides an original study of the sizeable Portuguese community in Ayutthaya, the chief river-state in Siam, during a period of apparent decline (1640-1720). Portuguese populations were displaced from their chief settlements like Melaka and Makassar, and attracted to the river-states of mainland South-East Asia by a protective model of kingship, hopes of international trade and the opportunity to harvest souls. A variety of sources will be used to shed light on the fortunes and make-up of this displaced, mixed-race 'tribe', which was largely independent of the matrices of Portuguese colonial power, and fared poorly alongside other foreign communities in this remarkably open, dynamic environment. “

Outro exemplo: para mim gostar de história é ir a Malaca, na Malásia, e estar junto de dezenas de malaios (um chama-se Francisco de Xavier) emocionados por verem 'um português de Portugal', e ainda me dizerem que se sentem portugueses e falarem comigo num português arcaico do século XVI - cantaram-me até uma canção de embalar dessa altura. E é também curioso ouvi-los explicar porque é que existe o bairro português em Malaca, com malaios descendentes do casamento de portugueses com nativos, mas não existe um bairro semelhante com holandeses ou britânicos (que ocuparam Malaca bem depois - e mais tempo - do que os tugas).

É bem interessante perceber o que alimentava a sociedade naquela época e isso permite conhecer boas histórias e tirar ilações sobre o ser humano e o seu processo de evolução - poucos navegadores portugueses morreram sem ser de mortes violentas. Na verdade as várias fases mais relevantes da história trouxeram-nos (por virtuosismo, boas, más e assim assim intenções, ou força bruta e violência) até à era tecnológica e digital de hoje e para uma sociedade melhor (ainda com muito por melhorar, é certo). A religião a um nível fanático (cruel, violento, absoluto e como desculpa para tudo), o comércio como motor das nações (incluindo o comércio de escravos, de pessoas, seres humanos), a conquista de terra (no caso dos portugueses, sempre em menor número, poucas vezes foi a prioridade - o comércio a todo o custo era rei e senhor). A altura das "Descobertas" nunca foram vistas como tal pelos portugueses na altura. Era navegar por mares nunca dantes navegados para poder conseguir o comércio certo que permitisse ter força negocial na Europa e prosperar (para o que era prosperar na altura).

E também é bem interessante conhecer o lado pior dessa mesmo história que incluía traições, injustiças várias, pobres tratados como lixo e um comércio de escravos execrável focado em África mas que ia do Brazil ao Japão. O sociedade esclavagista em que se vivia na altura está muito bem explicada aqui (en.wikipedia.org/wiki/Slavery_in_Portugal) neste caso só focada em Portugal.

Dito isto, custa-me ver tornarem a história e as suas figuras em algo simples e bidimensional, preto ou branco, sem cinzento, ainda para mais num povo repleto de misturas raciais e com pessoas de tons de pele bem diferentes (e sim, existe racismo e xenofobia, embora acredito que cada vez menos e por ignorância pura).

Mais do que o padre António Vieira, a recente polémica em torno do navegador Gaspar Corte-Real é peculiar e, pelos vistos, está toda centrada na forma ligeira e várias vezes incorrecta como um português, Gilberto Fernandes, especialista em etnicidade e raça tem contado a história a propósito de uma estátua no Canadá. O pai do tal navegador visado e que tem estátua na Terra Nova, João Corte-Real, terá sido o primeiro europeu na América a meio do século XIV. Gaspar, 'acusado' agora de trazer nativos da Terra Nova para Portugal, na verdade nunca voltou a Portugal nessa mesma viagem em 1501... nunca se soube o que aconteceu à sua nau, se ele naufragou ou ficou preso em terra.

O seu irmão, Miguel, voltou à Terra Nova para tentar encontrar o irmão e também nunca voltou a Portugal. Pelos vistos julga-se existirem vestígios que terá vivido na Terra Nova no meio de índios (provavelmente sem nau para voltar a casa) pelo menos até 1511 (há uma pedra que pode - ou não, não há certezas - ter palavras escritas por si). Imaginar um navegador português a ser obrigado a viver no ano da (alegada) graça de 1501, numa terra (um Continente, na verdade) desconhecida no meio de nativos e a sobreviver e eventualmente entender-se com eles é simplesmente maravilhoso.

(ESTE link remete para um investigador canadiano sem qualquer ligação a Portugal que foi quem associou pela primeira vez uns arabescos numa rocha na Terra Nova, no Canadá, ao navegador Miguel Corte-Real, possivelmente o primeiro europeu da Idade Média a viver e morrer no Continente africano)

Henrique de Malaca