sábado, outubro 09, 2004

Coração Bazar | «Democratizar a cultura»


Regina Duarte


A maturidade de Regina num monólogo

Alegre. Apaixonada. Bem disposta e com muita maturidade e amor na voz. Regina Duarte, celebrizada em telenovelas como Roque Santeiro, está de regresso a Portugal para fazer uma tourné com peça teatral Coração Bazar, onde interpreta seis personagens com personalidades distintas num monólogo que a coloca sozinha no palco. A actriz construiu com base em textos de escritores famosos – de Carlos Drummond de Andrade ou Vinícius de Moraes a Florbela Espanca e Fernando Pessoa – uma peça positiva sobre a vida humana. Em destaque está a alegria de viver, a passagem do tempo, a morte, e como o amor e o companheirismo podem dar mais sentido à vida. Uma peça para fazer reflectir.

João Tomé

Em cena em Lisboa, Teatro Tivoli, de 13 a 24 de Outubro, depois de já ter passado por Vila Real, Vila Nova de Famalicão, Porto e ainda ir passar pela Covinhã (5 de Outubro) e Aveiro (9 de Outubro).


Este é um projecto que tem um significado especial para si, afinal de contas, é o seu primeiro monólogo?
É um espectáculo onde eu sinto que me desnudo de uma maneira mais ampla e mais completa, porque considero que é mais autoral, na medida em que utilizo textos de grandes autores para dizer tudo o que sinto e penso nesta fase da minha maturidade, como pessoa e como actriz. Afinal já lá vão 40 anos de experiência teatral e queria ter esse encontro com o público que acompanha o meu trabalho, com um texto de qualidade, que tivesse homenagens há vida. Que colocasse em destaque a alegria de viver, a importância do amor e do companheirismo e solidariedade, para que se possa ter uma existência mais rica e com mais sentido. É mais ou menos isso, esta peça. É um momento de desafio, porque propõe que o público faça reflexões e celebrar a vida nos seus aspectos mais positivos, o que não é fácil nos dias que correm. Hoje é mais fácil falar nas atrocidades da realidade que se impõe, do que de um universo que pode até ser ingénuo e utópico perante uma brutalidade tão grande.

Ao fim de tantos anos de carreira ainda sente algum nervosismo ou ansiedade ao pisar o palco?
Sim, sim. Como sempre, todo o momento de entrar em cena é como saltar num trapézio sem rede. Sabe que se treinou muito mas cada momento é único e muito especial. Tudo pode acontecer e é nisso que consiste a grande magia e virtude do teatro. Cada espectáculo é absolutamente único, imprevísivel e carregado de uma emoção muito particular.

Encarnar seis personagens distintas numa só peça teatral é um desafio difícil na profissão?
A principio sim, mas é como as duas faces de uma moeda. Ao mesmo tempo em que se torna mais complicado técnicamente fazer estas reversões de personalidades e posturas cénicas, também é mais fácil porque o espectáculo ganha em mobilidade, em acção, em conflito e é disso que vive o teatro, senão seria apenas um recital de textos e essa não era a minha intenção e a do José Possi Neto que é o director que organizou estes textos e deu a eles todo um encanto e magia típicas de um espectáculo teatral.

Esta é uma peça de certa forma colectiva, mas também tem muito de pessoal tanto do próprio José Possi Neto como sua?
Exactamente. Acho que é um trabalho a quatro mãos quase, na medida em que eu fui elegendo os textos que mais falavam de mim, da minha maneira de ver o mundo, de sentir o mundo e as coisas todas desta existência, como o tempo, maturidade, morte, esperança, alegria. Tudo isso foi sendo eleito por mim para levar até ao público, mas quem organizou e deu uma roupagem teatral, de um espectáculo cheio de surpresas foi o José Possi Neto.

Que imagem pensa que os portugueses têm de si, depois de algumas das personagens tão conhecidas por cá que encarnou?
É uma experiência muito boa, muito rica, que repito mais uma vez. Não é a primeira vez que venho a Portugal, eu talvez tenha buscado mesmo este retorno a terras portuguesas porque me sinto muito bem aqui, me sinto em casa. O meu trabalho aqui é muito respeitado, é muito querido. E procuro dar o melhor de mim, cada vez que venho até aqui com uma proposta de trabalho. Acho que os portugueses têm uma imagem muito carinhosa a meu respeito e a tudo que já fiz. Por exemplo, lembram-se de todos os personagens e algumas cenas e histórias. Novelas como o Roque Santeiro, a Selva de Pedra, Rainha das Cartas, Malu Mulher, Por Amor, estão todas muito presentes na memória de muitos eles, que acompanharam com muito carinho tudo isso. Estar aqui de volta num espectáculo que faz a síntese de todos esses trabalhos, que procura no palco trazer todos esses personagens de volta à memória, é uma coisa que me dá muita alegria. Porque sinto que há reciprocidade por parte do público, eles se divertem, eles riem, eles se lembram da viúva Porcina, da Malu Mulher, das Helenas que já fiz nas novelas de Manuel Carlos. Então o resultado do encontro teatral é de alto valor emocional e artístico.

Portugal é um país de novas oportunidades para os actores brasileiros, neste momento?
Eu acho que cá têm uma cultura aberta, que cada vez mais se enriquece, porque busca novos projectos. Existem novos teatros que ainda não conhecia, muito bem equipados, com pessoal de alto nível profissional e projectos realmente muito densos, cheios de qualidade. Tudo isso é muito importante porque é o grande desafio para qualquer artista de qualquer parte do mundo que venha aqui se apresentar. Acho o público português muito exigente, quando ele gosta aplaude com muito entusiasmo, mas quando não gosta rejeita, deixa claro. E sabe o que é bom e o que não é para si. Por isso quando elege é de facto uma gratificação muito grande para o artista.

O Portugal dos dias de hoje, é mais Europa ou ainda é muito o país do Manuel com bigode, pouco evoluído?
Portugal hoje é um país da Europa, inteiramente condizente com qualquer outro país como Alemanha, França, Inglaterra, não há nenhuma diferença mais. Porque temos aí um universo cultural aberto a todas as tendências, respeitoso e com um movimento interno cultural da maior importância, podendo exportar talentos, criadores, actores, músicos. Eu tenho a maior admiração por todas as manifestações artísticas portuguesas que vão desde a literatura que tanto nos influenciou, não só aos brasileiros como a poetas e escritores do mundo inteiro, mas também músicos e pianistas. É um país do ponto de vista cultural do tamanho dos maiores países do mundo.

O encenador José Possi Neto, está a encenar a peça, Evangelho de Jesus Cristo, há uma proximidade dele com Portugal. Será que esta proximidade tem a ver com as novas oportunidades que Portugal cria aos brasileiros, será que tem a ver com o nível cultural actual?
Sem dúvida. Isso é verdade e importante, mas não posso deixar de falar da Plano Seis, que é uma produtora portuguesa que mostrou-se há quatro anos atrás com honra, quando tivémos por cinco semanas casas lotadas e um grande sucesso no teatro Tivoli, em Lisboa. Essa mesma Plano Seis volta a trazer-nos a Portugal, agora com um projecto bem mais abrangente e preocupada em levar o teatro a lugares que antes não costumavam ser visitados pelas produções estrangeiras. Considero isso também um ponto a ser valorizado.

Porquê a opção de passar por cinco cidades portuguesas, abandonando o circuito habitual de apenas Lisboa e Porto?
Eu acho que isso é uma tendência que também acontece no Brasil, de democratizar a cultura, de abrir as experiências culturais a outros mercados, comunidades, que muitas vezes não têm possibilidade de ir aos grandes centros. Acho que é importante para os núcleos culturais independentes que existem por todo o país, mas também porque há a criação de um público amante das artes.

Nesta viagem teatral que já começou dia 16 por Portugal, tem encontrado bons locais para o teatro, pessoas interessadas?
Esta viagem tem sido reveladora de um alto padrão técnico e não só das instalações, até agora em Vila Real e Famalicão. Realmente os teatros são casas de espectáculos equipadas com hoje o que existe de melhor no primeiro mundo e também o que é mais importante, o pessoal que ali trabalha que está ali para apoiar do ponto de vista técnico e profissional, é de altíssimo gabarito, técnico, profissional e também carinhoso, afectivo, dísponivel. Todos põem a mão na massa, trabalha, faz tudo para que o público saia compensado com o que o espectáculo passa oferecer de melhor.

Quais são os seus projectos para o futuro? As telenovelas já não a atraem como anteriormente, prefere o teatro, ou há espaço para as duas?
Há espaço para as duas, alternadamente. O teatro neste momento está ocupando o meu espaço todo, porque o monólogo é uma coisa que exige muito do artista que tem estado de concentração, mesmo do ponto de vista físico muito bem preparado para enfrentar aquela uma hora e pouco de contacto intenso com a plateia. Assim que houver um tempo no próximo ano eu pretendo voltar à televisão, vai depender simplesmente que me seja proposto um bom projecto, mas a televisão tem um espaço muito grande e importante na minha vida. A televisão é uma vitrine indispensável para qualquer artista que faz a sua pesquisa, o seu reabastecimento no teatro, ele precisa também da televisão para atingir públicos maiores, e dar maior abrangência no seu trabalho.
É também uma compensação, de certa forma?
É, exactamente.


A escolha da sua filha pela mesma profissão é algo que a satisfaz? Como se sentiu quando actuou com a sua própria filha?
Eu fui percebendo que a Gabriela era actriz muito cedo, quando ela tinha 3 ou 4 anos e senti que era uma coisa muito forte nela e que não havia muito a fazer em relação a isso. É uma opção que nasceu com ela e era um talento nato, porque tenho outros dois filhos que nunca demostraram interesse nesta profissão. A ponto de me acompanhar em tudo o que eu fazia, com alegria, com prazer, sem se chatiar ou aborrecer, como os outros faziam. Então a Gabriela é actriz, e é muito bom trabalhar com ela. É muito extremamente apaixonada pelo que faz, é uma menina muito disciplinada, muito séria que se tem preparado para a profissão de actriz da melhor maneira possível, procurando sempre se actualizar em cursos, workshops, buscando aulas com os melhores mestres, não só no Brasil, as no exterior também. Por isso, trabalhar com ela é uma alegria, até porque que somos mãe e filha e isso é inseparável da nossa condição de actriz e está sempre presente, e nos damos também muito bem como mãe e filha. O que não é obrigatório, mas no nosso caso acontece e considero que é uma benção mesmo.

Pretende que a sua filha siga uma carreira internacional, hoje em dia os actores brasileiros começam a tentar explorar o cinema de Hollywood, é também um desejo dela?
Acho que sim, ela tem essa possibilidade e está aberta a isso. Mas na verdade a gente não trabalha nesse sentido. Trabalhamos para o nosso país, para a nossa cultura, sobre a nossa cultura, como ponto de partida, elemento de pesquisa. E se isso tiver um interesse e repercussão fora do Brasil isso é óptimo, se não, o nosso trabalho no próprio país já é de bom tamanho e já nos dá muita gratificação.

trabalho publicado no jornal Destak, edição 141

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